
Discurso sobre
Fernanda Lunkes (UFSB)
Alexandre Ferrari Soares (UNIOESTE)
Silmara Dela Silva (UFF)
A noção de discurso sobre é mobilizada na tese de Bethania Mariani, intitulada “O comunismo imaginário; práticas discursivas da imprensa sobre o PCB”, defendida no Instituto de Estudos de Linguagem da Unicamp, em 1996, e que se torna livro dois anos depois (Mariani, 1998). Essa noção é assim definida pela autora:
Os discursos sobre são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos, portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da memória. Os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem sobre um discurso de (‘discurso-origem’), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral, representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão de conhecimento, já que o falar sobre transita na co-relação entre o narrar/descrever um acontecimento singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes já reconhecido pelo interlocutor. (Mariani, 1998, p. 60, itálicos do original).
Pelo funcionamento do “discurso sobre”, Mariani (1998, p. 61) aponta o modo como o discurso jornalístico “coloca o mundo como objeto”, produzindo o efeito de que apenas produz relatos que retratam as práticas cotidianas, apagando, assim, o processo de construção da notícia e(m) seu funcionamento discursivo.
Como afirma Pêcheux (1997 [1975]), todo dizer produz sentidos a partir de uma formação discursiva dada, responsável por determinar o que pode ou não ser dito, em determinada conjuntura sócio-histórica. É da posição em que se inscrevem os sujeitos discursivamente que decorrem os efeitos de sentidos produzidos a partir de uma dada materialidade significante, uma vez que, nos termos de Pêcheux, o sentido “não existe ‘em si mesmo’ (…), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas)” (Pêcheux, 1997 [1975], p. 160).
Como toda produção discursiva, a prática jornalística se dá a partir de um lugar determinado em uma conjuntura sócio-histórica e, por seu caráter institucional, atua na “institucionalização social de sentidos” (Mariani, 1998, p. 61). Essa prática se volta sobre o próprio funcionamento do discurso jornalístico, uma vez que reforça os sentidos naturalizados sobre o seu funcionamento. Mariani (1998) nos diz que os sentidos de neutralidade, verdade, objetividade e imparcialidade construídos sobre/para o discurso jornalístico também vão se institucionalizando de forma a circular com naturalidade: essa naturalidade se faz na relação entre aquilo que é produzido, como já dissemos, no funcionamento do discurso sobre instituindo, como efeito, uma evidência de funcionamento do discurso jornalístico fora do ideológico.
A autora compreende também que esse efeito de “institucionalização social de sentidos” tem como consequência a atuação das práticas discursivas jornalísticas nos processos de “constituição do imaginário social e na cristalização da memória do passado, bem como na construção da memória do futuro” (Mariani, 1998, p. 61). Esse funcionamento do discurso jornalístico na construção de uma memória do futuro se dá, conforme Mariani (2003), pelo efeito mesmo de que aquilo que circula nas páginas dos jornais na atualidade não é sem consequências para “a leitura desses mesmos fatos do presente, no futuro” (Mariani, 2003, p. 33), uma vez que o discurso jornalístico participa da seleção de fatos que serão rememorados futuramente.
Em seu percurso de pesquisa acerca do discurso jornalístico, Mariani (1998) mostra o modo como, na imprensa brasileira, constituem-se efeitos de sentidos para os comunistas e o comunismo sempre a partir de um “discurso sobre”, livre de qualquer possibilidade de embate ou polêmicas com “discursos dos comunistas”, por exemplo, o que produz um efeito de consenso. Os dizeres sobre os comunistas e o comunismo, presentes na imprensa no período de 1922 a 1989, época sobre a qual incidiram as análises de Mariani (1998) aqui mencionadas, inicialmente dedicados a definir/explicar o que era o comunismo (décadas de 30 e após 1964), e, posteriormente, a dizer dos tipos de comunistas, ressoam em dizeres em curso na atualidade, que seguem sustentando o comunismo como inimigo, em oposição à saúde em tempos pandêmicos, por exemplo, como demonstram as análises de Dela-Silva e Lunkes (2022). É desse modo que o discurso jornalístico produz memória, pela repetição dos sentidos, que participa da produção dos efeitos de evidência.
Ao colocar-se na posição de explicar o mundo aos seus leitores, ainda que sob o efeito de falar sobre, os jornais produzem gestos interpretativos, participando ativamente do modo como os sentidos vão ganhando certas direções e não outras, e também, do modo como alguns sentidos são privilegiados, enquanto outros vão caindo no esquecimento, sendo silenciados. A respeito do funcionamento do silêncio no discurso, Orlandi (2003 [1983]) afirma que o dizer é, por vezes, silenciador; e ressalta que em relação à função silenciadora, funciona também a injunção ao dizer: dizer “sobre os comunistas” para não deixar que compareçam dizeres “dos comunistas”, por exemplo, como nos mostra o percurso de pesquisa empreendido por Mariani (1998).
Pelo recurso ao “discurso sobre”, a prática discursivo-jornalística busca colocar-se, assim, como imaginariamente simples mediadora entre o mundo e os leitores. Contudo, como afirma Orlandi (2003 [1983], p. 275): “o mediador tem uma função decisiva na constituição das relações de poder. Ser mediador, no domínio do discurso, é fixar sentidos, é organizar as relações e disciplinar os conflitos.”. Em suas práticas jornalísticas, desse modo, a imprensa opera sob “o efeito de literalidade decorrente da ilusão da informatividade”, como afirma Mariani (1998, p. 63), mas isso é tão somente um efeito. Como afirma a autora, ao discorrer acerca do início das atividades da imprensa brasileira: “Sob a alegação de estar informando, o jornal permanece opinativo e interpretativo, constituindo sentidos, produzindo história.” (Mariani, 2003, p. 35).
A reforma do ensino médio: funcionamento do discurso jornalístico como um discurso sobre
Ao examinar o funcionamento da prática discursiva jornalística, observa-se que o processo de encadeamento na qual os eventos são construídos discursivamente produz uma perspectiva sobre a realidade que parece evidente, imparcial e objetiva. Entretanto, a produção de sentidos no discurso jornalístico não se constitui unilateralmente, mas através de um jogo de influências desigual entre os jornalistas, os leitores e a instituição, interpelados pela ideologia e atravessados pelas condições sócio-históricas.
Em nossa pesquisa (Matheus, 2020), nos pareceu útil pensar o discurso jornalístico sob a perspectiva mobilizada por Mariani (1996), ao examinar o discurso produzido pela mídia sobre o PCB. A autora caracteriza o discurso jornalístico como um discurso sobre, no qual o sujeito jornalista constrói o efeito de distanciamento do objeto sobre o qual fala e se posiciona para o leitor sob a representação de um observador imparcial da realidade. Tal representação possibilitaria ao jornalista emitir julgamento, opinião, explicar os fatos etc., sem que sua credibilidade seja questionada, pois o profissional de imprensa simula falar do lugar da isenção, através de um efeito de distanciamento.
Ao funcionar como um discurso sobre, o discurso jornalístico produz um efeito de linearidade e homogeneidade da memória que se efetiva devido ao lugar de autoridade que o jornalismo ocupa ao se posicionar como uma instância mediadora entre os acontecimentos a serem relatados, os discursos outros (testemunhais, de especialistas etc.) e o interlocutor.
No ato de relatar um acontecimento que envolve muitas variáveis sobre o qual há diversidade de discursos em disputa, o discurso sobre do jornalismo tende a funcionar como um discurso didático. Não raramente, observa-se no discurso midiático, sobre a educação, por exemplo, o uso de fluxogramas, explicações, definições, estatísticas, comparações, hierarquizações, avaliações e citações de especialistas que instauram um dizer didático sobre um acontecimento, almejando inscrevê-lo em generalizações e/ou simplificações que através de um efeito de evidência apagam, ou melhor, buscam apagar a interpelação ideológica sobre os sujeitos e as instituições.
Observemos o uso do imperativo nas SD a seguir, destacadas do conjunto de matérias e artigos produzidos pelo G1 sobre a reforma do ensino médio:
SD1: Veja abaixo os principais pontos (da reforma)[1]
SD2: Entenda a reforma do ensino médio[2]
O uso do imperativo nas SD destacadas produz um efeito de autoridade da posição-sujeito jornalista como aquele que pode guiar o leitor. Ao dar um comando para que seu interlocutor realize certo gesto ou ação, o jornalista assume o papel daquele que tem a autoridade de quem sabe e a isenção para dizer ao sujeito, na posição leitor que precisa ser guiado para interpretar o mundo, o que deve fazer. Ademais, na SD2, o imperativo do verbo entender coloca o jornalista como aquele que pode explicar os acontecimentos, enquanto na SD1 o imperativo do verbo ver cria o efeito de isenção e imparcialidade do discurso jornalístico como aquele que, meramente, seleciona o que tem relevância para o leitor e apaga seu gesto de interpretação da realidade.
Entretanto, o termo discurso pedagógico ou didático não deve ser entendido como o discurso do professor. Trata-se de um funcionamento do discurso midiático que ao construir uma narrativa para os acontecimentos cotidianos busca, sem sucesso, apagar as ambiguidades, criando o efeito de unicidade do sentido, e construir uma representação imaginária de si para o outro marcada por uma suposta imparcialidade, ou seja, o jornalismo faz uso de um discurso que busca construir o efeito de isenção, ao se apresentar como mero mediador entre os fatos, o saber sobre os fatos e aqueles que não sabem, mas precisam saber como as coisas do mundo se processam.
A construção discursiva objetiva e distanciada do objeto, a heterogeneidade de dizeres citados que comparecem no discurso, os recursos didáticos utilizados para explicar o acontecimento e o encadeamento causal entre os eventos que remetem a uma memória coletiva que ressoa no dizer, contribuem para construir um discurso sobre a verdade/realidade dos fatos enquanto efeito discursivo. Efeito esse que acentua o distanciamento entre aquele que pode interpretar corretamente o mundo e aquele que precisa que o mundo lhe seja explicado, ou seja, o leitor é colocado na posição-sujeito aluno cujo conhecimento prévio divergente sobre o acontecimento é anulado.
Outro funcionamento do discurso sobre/didático encontrado no corpus foi o amplo uso de perguntas retóricas.
SD3: O que é a reforma?[3]
SD4: O que ficou definido na reforma?[4]
SD5: A reforma muda quais leis que regulam a educação?[5]
O uso de perguntas retóricas para introduzir explicações sobre a Reforma do Ensino Médio e seus efeitos também instala um lugar para a posição-sujeito jornalista de superioridade hierárquica em relação a seu interlocutor. A pergunta retórica (SD5) sobre as mudanças que o projeto de lei impõe à legislação atual reforça o didatismo do discurso sobre do jornalismo sobre o tema, ao mostrar os nexos de causa e efeito entre a reforma e a LDB, assunto pouco presente na pauta midiática e distante da população.
Em um movimento de derivação parafrástica para examinar os efeitos de sentido construídos na SD4, construídos a partir do atravessamento do interdiscurso no dizer, podemos deslizar o sentido do verbo em face às condições sócio-históricas em que o termo foi aplicado por:
O que ficou definido na reforma?
O que ficou alterado com a reforma?
O que ficou imposto pela reforma?
A deriva (movimento parafrástico) do verbo definir para alterar e impor remete ao caráter antidemocrático da proposta. Em um primeiro momento, a alteração da legislação foi apresentada sob a forma de medida provisória, MP 746, gerando grande polêmica e anulando as discussões travadas no CNE, Conselho Nacional de Educação, em audiências públicas com maior participação dos diversos segmentos envolvidos com a educação.
Ao dizer sobre o que foi definido ou alterado com a reforma, apagam-se os interesses que movem um governo que não investe em educação e a plenitude das alterações. O efeito de imediatismo produzido no discurso silencia os efeitos de longo prazo que a lei 13.415/2017 produzirá, como a ampliação da desigualdade entre as unidades de ensino e o avanço de interesses privados na educação pública.
[1] Acessado em 02/03/2018: (http://g1.globo.com/educacao/noticia/temer-apresenta-medida-provisoria-dareforma-do-ensino-medio-veja-destaques.ghtml).
[2] Acessado em 02/03/2018: (http://g1.globo.com/educacao/noticia/entenda-a-reforma-do-ensino-medio-ghtml).
[3] Acessado em 02/03/2018: (http://g1.globo.com/educacao/noticia/entenda-a-reforma-do-ensino-medio.ghtml).
[4] Acessado em 02/03/2018: (http://g1.globo.com/educacao/noticia/entenda-a-reforma-do-ensino-medio.ghtml).
[5] Acessado em 02/03/2018: (http://g1.globo.com/educacao/noticia/entenda-a-reforma-do-ensino-medio.ghtml).
Discurso sobre retoma um gesto de definir essa noção teórica, apresentado em:
FERRARI SOARES, Alexandre; LUNKES, Fernanda; DELA-SILVA, Silmara. Uma trajetória de pesquisa e(m) seus efeitos: um gesto de homenagem a Bethania Mariani. In: CASTELLO BRANCO, Luiza. Et all. (Org.). Entrenós da Língua, do Sujeito, do Discurso. Vol. 1. Campinas: Pontes Editores, 2022, v. 1, p. 53-66.
Referências
DELA SILVA, Silmara; LUNKES, Fernanda. Pandemia e(m) flagrantes urbanos. In: GRIGOLETTO, Evandra. Et all. (Org.). Tensões entre o Urbano e o Digital: discursos, arte, política(s). Campinas: Pontes Editores, 2022. p. 75-91.
MARIANI, B. Os primórdios da imprensa no Brasil (ou: de como o discurso jornalístico constrói memória). In: ORLANDI, E. (Org.). Discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional. 3 ed. Campinas: Pontes, 2003. p. 31-42.
MARIANI, B. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Rio de Janeiro: Revan; Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1998.
MATHEUS, Mario Luiz B.F. O discurso jornalístico sobre a reforma do Ensino Médio: condições de produção, memória e efeito de evidência. 2020. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ.
ORLANDI, E. A fala de muitos gumes (As formas do silêncio). In: ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4 ed. Campinas: Pontes, 2003. p. 263-276.
PÊCHEUX, M. [1975]. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. Trad. Eni Orlandi [et al]. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.