
Discurso sobre (II)
Bruno Roncada (UFF)
Eber Fernandes de Almeida Junior (UFF)
A noção de “discurso sobre” foi desenvolvida por Bethania Mariani em sua tese de doutorado (1996) intitulada O comunismo imaginário: práticas discursivas da imprensa sobre o PCB (1922-1989). No entanto, já há uma elaboração prévia de uma noção discursiva do olhar do outro sobre um objeto – olhar que passa a pertencer também a este mesmo objeto por efeito de dominação ideológica – na obra Terra à vista – discurso do confronto: velho e novo mundo (2022 [1990], p. 24), de Eni Orlandi: “Procuramos nos conhecer conhecendo como a Europa conhece o Brasil. E no discurso das descobertas não encontramos senão modos de tomar posse”. A expressão aparece desenvolvida discursivamente da seguinte forma nesta obra:
O discurso sobre o Brasil ou determina o lugar de que devem falar os brasileiros ou lhes dá voz, sejam os nativos habitantes (os índios), sejam os que vão-se formando ao longo da nossa história. O brasileiro não fala, é falado. E tanto há um silêncio sobre ele, como ele mesmo significa silenciosamente, sem que os sentidos produzidos por essas formas de silêncio sejam menos determinantes do que as falas ‘positivas’ que se fazem ouvir categoricamente (Orlandi, 1990, p. 50, itálicos da autora).
Assim, tal como o brasileiro e sua imagem são tomados enquanto posse no processo de colonização do Brasil pelo europeu e seu discurso de conquista, é-nos dado a conhecer o comunismo pela imagem formada pelo discurso jornalístico. Em outras palavras, tomar posse da imagem do outro – seja para fins de colonização ou de desinformação – se configura como mecanismo discursivo do trabalho ideológico nos Aparelhos de Estado.
Consideramos que os ‘discursos sobre’ são uma das formas cruciais da institucionalização dos sentidos. É no ‘discurso sobre’ que se trabalha o conceito da polifonia. Ou seja, o “discurso sobre” é um lugar importante para organizar as diferentes vozes (dos discursos de). Assim, o discurso sobre o samba, o discurso sobre o cinema é parte integrante da arregimentação (interpretação) dos sentidos do discurso do samba, do cinema etc. O mesmo se passa com o discurso sobre o Brasil (no domínio da história). Ele organiza, disciplina a memória e a reduz. (Orlandi, 1990 nota de rodapé, p. 37, grifos nossos).
É possível extrair de Mariani (1996) três noções epistemológicas implícitas em “discurso jornalístico sobre o comunismo”: a) há discurso sobre, b) há discurso jornalístico (sobre) e c) discurso sobre o comunismo/comunista. A primeira segmentação da noção estabelece o sentido de “tornar objeto aquilo sobre o que se fala (p. 63)” por um efeito de distanciamento metaenunciativo, agindo na determinação institucional dos sentidos, sujeita à homogeneização de dizeres outros, abrindo ao limite espaço para a coisificação do outro. O discurso jornalístico sobre – em especial, na formação social brasileira – apresenta, assim, interpretações para acontecimentos que devem se instituir na memória enquanto fatos novos (injunção a um dever-saber). Sob o simulacro de objetividade, imparcialidade e a ideologia positivista no tratamento dos saberes em circulação, o discurso jornalístico sobre constitui e é constituído pela imagem de um enunciador neutro. Ao tornar o comunismo/comunista posse de seu dizer, o discurso jornalístico sobre não apenas forma uma imagem homogênea e sujeita à sua posição institucional no dizer para esse objeto, mas silencia os dizeres constituídos e em circulação formulados pelo comunismo/comunista como sujeito.
Assim, como desdobramento da noção de formações imaginárias, em que um ponto sujeito A se relaciona a um ponto sujeito B em certas condições de produção do discurso (Pêcheux, 2010, [1969]):
Os discursos sobre são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos, portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da memória. Os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem sobre um discurso de (‘discurso-origem’), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral, representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão de conhecimento, já que o falar sobre transita na co-relação entre o narrar/descrever um acontecimento singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes já reconhecido pelo interlocutor (Mariani, 1996, p. 64, itálicos da autora).
O discurso jornalístico estaria, portanto, segundo a autora (Ibidem), contribuindo “na constituição do imaginário social e na cristalização da memória do passado bem como na construção da memória do futuro”. E de certa forma, como ela também pontua (Ibidem, pp. 66-67), a esse discurso jornalístico seria atribuída uma função semelhante a de um historiador, uma vez considerada a atuação do discurso jornalístico na desambiguação do mundo e na ordenação e organização dos fatos.
A noção de discurso sobre foi retomada em vários trabalhos de Análise do Discurso no Brasil, sem priorizar especificamente a mídia ou o aparelho da informação no trato do discurso jornalístico sobre (Mariani, 1996). Algumas das análises e reflexões teóricas que podemos elencar são:
- O discurso sobre a tradução no Brasil, de Beatriz Caldas, em sua tese de doutorado intitulada Discursos de/sobre tradução no Brasil: línguas e sujeitos (2009). Para a autora, as práticas constituintes da tradução como força social podem ser analisadas a partir de uma posição interna (posição de) ou externa (posição sobre) ao espaço em que elas se materializam. Relacionadas a relações de forças, a posição de um discurso sobre a tradução determina o que e como deve ser feito em conformidade a interesses políticos; a posição de um discurso da tradução, o que e como pode ser feito a partir das dificuldades linguísticas e históricas postas no gesto de traduzir. Seu corpora é constituído, além de interações online entre tradutores, pelos prefácios de Lourenço Filho (1954) e de Tatiana Belinky (2004) para o livro de Brenno Silveira, A Arte de Traduzir; o de Aurélio Buarque de Holanda publicado no livro de Paulo Rónai, A Tradução vivida, lançado em 1975. Ademais, as atas de fundação da ABRATES (Associação Brasileira de Tradutores), da ABRATES-RJ (Associação Profissional de Tradutores do Estado do Rio de Janeiro) e do SINTRA (Sindicato Nacional dos Tradutores).
- O discurso sobre alimentação nas enciclopédias brasileiras como modo de discursivização sobre cultura, de Phellipe Marcel da Silva Esteves, em sua tese de doutorado intitulada O que se pode e se deve comer: uma leitura discursiva sobre sujeito e alimentação nas enciclopédias brasileiras (1863-1973) (2014).
- O discurso sobre a(s) língua(s) nas práticas de metalinguagem também faz referência à noção de Mariani (1996). Gramáticas, dicionários e enciclopédias seriam, antes de objetos de descrição do que se propõem apreender, discursos condicionados a uma rede de sentidos a respeito da epistemologia do fazer científico. Assim, a análise do discurso metalinguístico pressupõe um discurso sobre sobre.
Em seu próprio trabalho de tese, Mariani mostra o funcionamento da noção de discurso sobre, especificamente, da de discurso jornalístico sobre o comunismo/comunista. A partir de sequências discursivas extraídas de diferentes jornais em diferentes épocas, a autora destaca como “comunista” vai sendo significado negativamente na imprensa: “sectário, feroz, tirano, desvairado, vermelho, inimigo, perigoso” (MARIANI, 1996, p. 105, itálicos da autora).
Continuando, Mariani pontua que, ao colocar “comunista” no lugar do Outro, a enunciação jornalística faz isso de forma a reafirmar o lugar do mesmo, no caso, representado por uma certa imagem de Brasil, convocada silenciosamente a partir de uma enunciação que projeta que somos um povo cordial, gentil (Ibidem).
Assim sendo, a autora trabalha com duas formações discursivas distintas em confronto, que são a Formação Discursiva dos Brasileiros (FDB) e a Formação Discursiva Comunista (FDC). Com a dominância da formação discursiva brasileira no discurso jornalístico-político, é ela que rege os processos de significação sobre o comunismo. Enquanto isso, a formação discursiva comunista “comparece enquanto sentido a ser antecipadamente negativizado e antecipado” (Ibidem, p. 177). Como mais adiante afirma a autora (Ibidem, pp. 241-242), comunista passa a ser um sentido impossível de ser formulado nessa Formação Discursiva dos Brasileiros, ao mesmo tempo em que o sentido de comunismo passa a ser necessariamente negado para que se reforce uma imagem positiva de brasilidade (em contraposição ao “outro-comunista”) através de seus mitos difundidos na imprensa: “a cordialidade, a índole dócil, a religiosidade cristã, o apego à moral e aos bons costumes, a defesa da propriedade e da família etc” (Ibidem, p. 241, itálicos da autora).
Referências
CALDAS, B. F. Discursos sobre/de tradução no Brasil: línguas e sujeitos. Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2009.
ESTEVES, P. M. S. Discurso sobre alimentação nas enciclopédias do Brasil: Império e Primeira República. Niterói, RJ: EdUFF, 2016.
MARIANI, Bethania. O comunismo imaginário: práticas discursivas da imprensa sobre o PCB (1922 -1989). 256 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1996.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à Vista: discurso do confronto- velho e novo mundo. Campinas, SP: Pontes, 1990.