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Materialidade significante

Beatriz Pereira Nunes Paragó (UFF)
Raquel Anne Lucas Magalhães (UFF)

No artigo “O recorte significante da memória”, Lagazzi (2009) propõe a análise de materialidades significantes recortadas a partir do documentário Tereza (1992), de Goifman e de Souza, refletindo sobre a imbricação entre o verbal e o visual. A autora adentra, assim, o território das diferenças de composição das materialidades significantes, compreendendo que elas produzem sentidos pela/na relação de contradição e incompletude que nelas se produzem, (re)atualizando o que Pêcheux ([1983] 2007, p. 55) questiona sobre “a relação entre a imagem e o texto: no entrecruzamento desses dois objetos”.

A sua trajetória para pensar as diferentes composições das materialidades significantes parte do entendimento do acontecimento discursivo, como proposto por Pêcheux ([1983] 1990), no qual o batimento entre estrutura e acontecimento, perante a materialidade de composição heterogênea, permite compreender que seus diferentes elementos contribuem para os efeitos de sentidos que nela se constroem. A autora, dessa forma, entende que a imbricação entre as composições da materialidade é constituída pela incompletude, “na remissão de uma materialidade a outra, a não-saturação funcionando na interpretação permite que novos sentidos sejam reclamados, num movimento constante de demanda” (Lagazzi, 2009, p. 68).

Na construção de seu artigo, Lagazzi afirma também ser necessário mobilizar a noção de recorte, trazida por Orlandi (1984), compreendendo-a como unidade marcada pela incompletude, que ao ser recortada pelo analista, permite que o funcionamento do discurso seja posto de forma a compreender os efeitos de sentido, a cadeia significante que ali se inscreve. Nessa perspectiva, o recorte permite que o analista chegue à incompletude e que parta dela para compreender o funcionamento do(s) discurso(s) que se inscrevem na materialidade significante em questão.

Lagazzi argumenta sobre a composição dos diferentes elementos de uma materialidade e não sobre as suas relações de complementariedade na imbricação material: “não temos materialidades que se complementam, mas que se relacionam pela contradição, cada uma fazendo trabalhar a incompletude na outra” (Lagazzi, 2009, p. 68). É na relação entre a contradição e a incompletude, características intrínsecas do funcionamento do discurso, que as diferentes composições (sejam elas verbais e visuais, como trabalhados pela autora no artigo, sejam outras possibilidades suscitadas pelo contato com o arquivo) das materialidades são consideradas a partir do batimento entre teoria e análise que o material clama, uma vez que o “dispositivo permite ao analista mobilizar, na relação teoria-prática, as diferenças materiais, sem que as especificidades de casa materialidade sejam desconsideradas” (Lagazzi, 2009, p. 68).

Em 2017, Raphael de Morais Trajano, em artigo intitulado A materialidade significante da musicalidade: uma proposta de teorização, metodologia e análise discursiva, busca analisar, à luz da Análise do Discurso de base materialista, concepções iniciais do que designou como materialidade significante da musicalidade. Foram trazidos teóricos para pensar em que consiste a música: língua ou linguagem? A música, enquanto linguagem, segundo o autor, passa por uma reflexão pela Análise do Discurso, já que, na linguagem musical, materializam-se discursos. Os sentidos do discurso passam pela relação existente nas diferentes materialidades significantes: ritmo, melodia, som, suportes tecnológicos, instrumentos e tudo o que envolve o contexto sócio-histórico de produção musical.

Em 2023, Ana Cláudia de Moraes-Salles e Olímpia Maluf-Souza, no artigo A materialidade fílmico-significante em Her: na (des)corporeidade dos sentidos, buscou trazer, por meio de reflexões teóricas no campo da Análise do Discurso de base materialista, a materialidade fílmico-significante por meio de um recorte do filme de ficção científica Her (2013), especificamente a relação sexual entre um homem e um sistema operacional. A relação entre a paleta de cores utilizada nas cenas, juntamente com o som, produz efeitos de sentido por meio do verbal, do não-verbal, assim como da ausência e da presença de elementos visuais e sonoros, do silêncio e do escuro, trazendo representações de diferentes materialidades significantes no discurso fílmico.

Referências

LAGAZZI, Suzy. O recorte significante da memória. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro; MITTMANN, Sandra (orgs.). O discurso na contemporaneidade. São Carlos: Claraluz, 2009. p. 65-78.

MORAES-SALLES, Ana CláudiaMALUF-SOUZA, O. A materialidade fílmico-significante em Her: na (des)corporeidade dos sentidos. Crítica Cultural, v. 18, p. 15-23, 2023. Disponível em: <https://portaldeperiodicos.animaeducacao.com.br/index.php/Critica_Cultural/article/view/18963>. Acesso em:  13 dez. 2024.

ORLANDI, Eni P. “Segmentar ou recortar?”. Linguística: questões e controvérsias. Série Estudos 10. Curso de Letras do Centro de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas de Uberaba, 1984.

PÊCHEUX, Michel. [1983]. Papel da memória. In: ACHARD, P. (et al.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 2007. p. 49-57.

PÊCHEUX, Michel. [1983]. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1990.

TRAJANO, Raphael de Morais. A materialidade significante da musicalidade: uma proposta de teorização, metodologia e análise discursiva. Cadernos do IL, Porto Alegre, n.º 55, p. 148-163, dezembro de 2017. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/index.php/cadernosdoil/article/view/67742>. Acesso em: 13 dez. 2024.