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Policromias

Silmara Dela Silva (UFF)
Fernanda Lunkes (UFSB)
Ceres Carneiro (UERJ)

Começamos por retomar duas longas citações de Tania Clemente de Souza (2001), a respeito dessa noção teórica, expostas no Quadro 1:

“O conceito de polifonia (DUCROT, 1980) pressupõe que todo texto traz em sua constituição uma pluralidade de vozes que podem ser atribuídas ou a diferentes locutores, caso dos discursos relatados, ou a diferentes enunciadores, quando se atesta que o locutor pode se inscrever no texto a partir de diferentes perspectivas ideológicas. […] Essas vozes imprimem ao texto o caráter de heterogeneidade, definido por Authier (1990) como heterogeneidade(s) enunciativa(s). […] O texto de imagens também tem na sua constituição marcas de heterogeneidade, como o implícito, o silêncio, a ironia. Marcas, porém, que não podem ser pensadas como vozes, porque analisar o não-verbal pelas categorias do verbal implicaria na redução de um ao outro. Nesse caso, por associação ao conceito de polifonia, formulamos o conceito de policromia (SOUZA, 1997), buscando analisar a imagem com mais pertinência.” (SOUZA, 2001, p. 80).

“O conceito de policromia recobre o jogo de imagens e cores, no caso, elementos constitutivos da linguagem não-verbal, permitindo, assim, caminhar na análise do discurso do não-verbal. O jogo de formas, cores, imagens, luz, sombra, etc. nos remete, à semelhança das vozes no texto, a diferentes perspectivas instauradas pelo eu na e pela imagem, o que favorece não só a percepção dos movimentos no plano do sinestésico, bem como a apreensão de diferentes sentidos no plano discursivo-ideológico, quando se tem a possibilidade de se interpretar uma imagem através de outra.” (SOUZA, 2001, p. 80, itálico do original).

Quadro 1: a noção de policromia em Souza (2001)

 

A noção de policromia, formulada por Souza (2001, p. 80) a partir do radical “cromo”, em seus termos, “utilizado aqui com o sentido aproximado de cromolitografia, arte de estampar em relevo figuras coloridas”, busca, assim, recobrir “o jogo de imagens, cor, luz e sombra etc. presentes às imagens” (SOUZA, 2001, p. 80), de modo que a análise da materialidade não-verbal não seja reduzida ao verbal.

Para a proposição da noção de policromia, Souza (2001) recupera de início o modo como os trabalhos de análise de imagens costumavam ser associados a duas vertentes. A primeira, por sua aproximação ao linguístico, “discutindo-lhe as questões relativas à arbitrariedade, à imitação, à referencialidade” (SOUZA, 2001, p. 66). E a segunda, quando se consideram os seus traços específicos, “como extensão e distância, profundidade, verticalidade, estabilidade, ilimitabilidade, cor, sombra, textura, etc.” (SOUZA, 2001, p. 66). Dessas duas vertentes decorrem alguns dos estudos mencionados pela autora, que se desenvolvem, respectivamente, ancorados nas proposições de Saussure e Peirce. Em ambas as tradições de estudos, Souza (2001, p. 67) critica a “formalização que congela o significado e apaga a historicidade do sentido”.

Em seu percurso, a autora retoma também as proposições semióticas de Vilches (1991 apud SOUZA, 2001), que propõe uma leitura da imagem a partir de unidades relativas ao seu próprio funcionamento. Ocorre que, conforme aponta Souza (2001, p. 69), tais análises não colocam em discussão “nem os usos que vêm sendo feitos – como na mídia, por exemplo – da imagem, nem as possibilidades de interpretação da imagem social e historicamente determinadas”. A proposição de Souza (2001), conforme se observa, localiza-se em torno de um olhar discursivo para a imagem em seu funcionamento. Em seus termos, o conceito de policromia instaura-se nesse “lugar que permite ao interpretar a imagem projetar outras imagens, cuja materialidade não é da ordem da visibilidade, mas da ordem do simbólico e do ideológico. Da ordem do discurso.” (SOUZA, 2001, p. 72).

Nesse mesmo texto em que apresenta formalmente a noção de policromia, Souza (2001) desenvolve algumas análises que buscam justamente sustentar a sua proposição de que a imagem não deve ser pensada a partir de sua segmentação, mas sim como um discurso, em seu funcionamento próprio. Desse modo, ela se dedica a análise da imagem na relação com a teorização sobre o silêncio (ORLANDI, 1992), a partir da análise do conjunto de três cenas finais do filme Thelma & Louise (1991). Para pensar as particularidades da imagem na TV, retoma algumas das análises do programa Linha Direta, desenvolvidas na dissertação de Mendonça (2001); e se volta a algumas cenas de um documentário sobre o “Batizado do Milho”, ritual dos povos Bakairi, exibido em uma das edições do programa Globo Rural. A autora faz ainda duas paradas para pensar as especificidades da imagem no jornalismo impresso e na publicidade, concluindo que “a policromia assoma como o lugar dos deslizamentos e como o lugar de rede de filiações por imagens” (SOUZA, 2001, p. 93).

Em outros trabalhos, a autora retoma a noção de policromia, mostrando o funcionamento das imagens em relação à constituição de acontecimentos discursivos e à memória, como em: – “Carnaval e memória: das imagens e dos discursos” (SOUZA, 2008); – “O papel da imagem na constituição da memória” (SOUZA, 2012); e – “Imagem, textualidade e materialidade discursiva” (SOUZA, 2013).

A conceituação proposta por Souza (2011) também tem sido mobilizada em diversos trabalhos no campo teórico da análise do discurso. Um exemplo dessa mobilização está na tese de Trajano (2016), que se volta à análise discursiva de um videoclipe, considerando as materialidades linguística, imagética e musical. Ao tratar do discurso imagético, Trajano (2016) retoma Souza (2013) em sua proposição da noção de policromia, mostrando que: “O imagético passa a ser tomado como fundamentalmente heterogêneo, com seus próprios operadores discursivos não-verbais, tais como: cor, detalhe, ângulo, luz, sombra etc.”. Pensando as consequências para a música, em sua materialidade específica, por exemplo, o autor afirma: “não se discute, por exemplo, que a inscrição de instrumentos como pandeiro e repique em uma canção atualizam também a memória e as redes de sentido em que se inscrevem.”, mostrando que, conforme afirma Souza (2013), “o dispositivo teórico da Análise do Discurso oferece as condições necessárias para o trabalho com diferentes objetos simbólicos.”.

Um outro exemplo de mobilização da noção de policromia está na dissertação de Soares (2016), que se dedica à análise discursiva de sentidos para o que é ser brasileiro, em propagandas da Copa do Mundo de 2014. Ao mobilizar a proposição de Souza (2001) acerca da eficácia simbólica da imagem como dispositivo, Soares (2016) volta-se à relação entre os níveis policrômico e polifônico na constituição de sentidos no discurso publicitário.

Policromias retoma um primeiro gesto de inventariar essa noção teórica, apresentado em:

DELA SILVA, S, LUNKES, F. L.; CARNEIRO, C. F. Discurso e mídia e(m) inventário digital: uma tomada de posição discursiva. Policromias — Revista de Estudos do Discurso, Imagem e Som, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 213-232, set./dez. 2022. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/policromias/article/view/55679/30664

Referências

SOARES, Paula G.F. “O que é ser brasileiro”: formações imaginárias no discurso publicitário da Copa do Mundo 2014. Niterói, 2016. 109 f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.

SOUZA, Tania C.C. Imagem, textualidade e materialidade discursiva. In: RODRIGUES, Eduardo Alves; SANTOS, Gabriel. Leopoldino dos; CASTELLO BRANCO, Luiza K. Análise de Discurso no Brasil: pensando o impensado sempre. Uma homenagem a Eni Orlandi. Campinas: Editora RG, 2013.

SOUZA, Tania C.C. Carnaval e memória: das imagens e dos discursos. Contracampo, Niterói, v. 13, p. 139-157, 2008. Disponível em:  https://periodicos.uff.br/contracampo/article/view/17316. Acesso em: 03 nov. 2022.

SOUZA, Tania C.C. A análise do não verbal e os usos da imagem nos meios de comunicação. RUA, Campinas, v. 7, p. 65-94, 2001.

TRAJANO, Raphael M. HIP-HOP – Sujeito e(m) movimento: análise discursiva da imbricação entre as materialidades linguística, imagética e musical em um videoclipe publicado no Youtube.com. Niterói, 2016. 306 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.